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quarta-feira, 21 de julho de 2010

Conto ou "não" conto

Ele havia estudado o dia inteiro, derivadas pela manhã na escola, eletricidade a tarde no puxadinho dos fundos da casa. Por volta das 18h, foi às aulas da noite, afinal teria o maior desafio de sua vida até então em poucos meses, o temido vestibular.  Era um dia de semana, uma terça ou talvez uma quarta, próximo da meia noite. Banho tomado, lanche carinhosamente preparado pela avó na geladeira, jornal da noite visando melhoria dos conhecimentos gerais e atuais, foi à sua cama, também delicadamente arrumada por aquela que na ocasião tinha o papel digno de mãe.

Deitou e como de costume pensou, na vida. Largar família, amigos, e aos 16 anos ir pra bem longe de casa atrás do futuro realmente não era tarefa fácil, mas quem falou que seria? O investimento dos pais e de toda família, financeira e emocionalmente. Era o primeiro filho a sair de casa, a mãe devia sofrer e chorar sua ausência com certeza. Não tem a exata noção, mas 10 ou 15 minutos depois de deitar um feixe de luz entrou pela fresta da porta, era sem dúvida luz proveniente da sala de televisão adjacente à grande sala de jantar. A chance de alguém ter levantado pra ver Jô Soares, Goonies ou Cine Privé era praticamente nula.

Era sua avó, com semblante que o preocupava sobremaneira. Tendo dito poucas e desanimadoras palavras ela o guiou até a suíte do casal, onde o avô respirava com muita dificuldade. Tentava puxar o ar, mas ele não vinha. Tapas nas costas e álcool pra desobstruir as vias respiratórias eram técnicas em vão no momento. Não havia tempo pra pensar ou planejar nada, carregou o gigante barbado no lombo de adolescente rumo ao carro que já o aguardava na porta.

Daí em diante a história foi longa, sofrida, e repetitiva. Idas e vindas ao hospital, visitas individuais na unidade de terapia intensiva, testes e mais testes sem precisão ou sem sucesso. Pedras na visícula? Chegaram a dar risada delas em um pequeno saquinho, como se comemorassem o fim de um problema que de fato era muito mais sério. Algumas viagens de familiares depois, indagações a mil, visitas constantes no caminho de volta da escola até que, muitos meses depois, veio o cruel diagnóstico de câncer no pulmão. Fumara muito durante toda a vida, inclusive cigarro de palha sem filtro, devia ter ao menos a ver com aquela proliferação de células desenfreada.

O avô tinha 70 e poucos anos, era forte como uma rocha, fruto de uma vida vivida no interior, na roça mesmo. O cabelo resistia em cair, ele resistia em desistir de viver. A decisão da família foi a de não contar a verdade, deixariam ele viver os últimos dias, meses ou anos da vida sem o peso de saber. É improvável que seu corpo não tenha lhe confidenciado sobre a enfermidade, mas tudo bem. O objetivo foi atingido e, contrariando especialistas, vivera mais tempo que o esperado. Tempo suficiente para tomar novamente seu whisky escocês, jogar seu buraco, degustar uma pinguinha e celebrar o típico Natal da grande família.

Por aquelas ironias do destino dignas de um drama "hollywoodiano", o tempo extra foi suficiente para um último e doloroso pesar antes do próprio fim. Teve que se despedir daquela que lhe dedicou a vida inteira, em especial nas grandes dificuldades dos últimos tempos. Uma súbita e inexplicada interrupção nos dutos do intestino tirara a vida da lutadora companheira, pouco mais de uma semana depois da internação. Ele, já bem debilitado com o câncer depois de algumas metástases, se despedia com um beijo na testa de carinho e gratidão. Aquele que esteve ali anteriormente apenas para estudar, presenciava um dos momentos mais marcantes de sua vida. A primeira sensação real de perda, o primeiro choro de dor profunda, daqueles que deixam sequelas, que não se esquece, que se aprende a conviver.

7 comentários:

  1. putz...foda hein. aqueles dois deixaram saudade mesmo. hoje a tarde me peguei pensando mto no sítio e no vô nelo contando piadas...

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  2. Caraaaa...que msg é essa...me prendeu a atenção em plena 1 hr da manha tendo que acordar as 5...Sensacional, histórias que não se repetem, que não voltam mais, lembranças boas de 2 pessoas que deixaram história e todos nós para contá-las...amo mtu vocês...

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  3. Se eu fosse um cristão e dado a proselitismo, diria que o Nando é abençoado, que recebeu de uma vez só todos os dons possíveis. Como não sou e ainda o conheço, posso dizer que tudo isso é mérito próprio. Que bela crônica. Parabéns.

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  4. Ai Fe! Fiquei emocionada... Belo post. Parabéns.

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  5. Emocionante. Me fez chorar.

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  6. Muitos dariam vários "amanhãs" em troca de um único "ontem"; se o fizesse seria para reviver exatamente os mesmos momentos, não mudaria nada; pais maravilhosos que tive e que ainda souberam compartilhar momentos inesquecíveis com vocês, meus filhos. Somos privilegiados, parabéns Nando; já li e reli e me pego aqui chorando. Bjos.

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  7. Filho acho que, infelizmente ainda não tinha lido o "Conto ou não Conto", o que me fez lembrar muitas boas passagens que tivemos com Sr. Nelo e Dona. Maria e como você mesmo disse nesta crônica marcante foram perdas muito sentidas. Parabéns Filho pelas belas palavras, que me deixaram muito emocionado.

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